1-A ideologização da mensagem evangélica. É uma tentação que
se verificou na Igreja desde o início: procurar uma hermenêutica de
interpretação evangélica fora da própria mensagem do Evangelho e fora da
Igreja. Um exemplo: a dado momento, Aparecida sofreu essa tentação sob a forma
de assepsia. Foi usado, e está bem, o método de "ver, julgar, agir"
(cf. n.º 19). A tentação se encontraria em optar por um "ver"
totalmente asséptico, um "ver" neutro, o que não é viável. O ver está
sempre condicionado pelo olhar. Não há uma hermenêutica asséptica. Então a
pergunta era: Com que olhar vamos ver a realidade? Aparecida respondeu: Com o
olhar de discípulo. Assim se entendem os números 20 a 32. Existem outras
maneiras de ideologização da mensagem e, atualmente, aparecem na América Latina
e no Caribe propostas desta índole. Menciono apenas algumas:
a) O reducionismo socializante. É a ideologização mais fácil
de descobrir. Em alguns momentos, foi muito forte. Trata-se de uma pretensão
interpretativa com base em uma hermenêutica de acordo com as ciências sociais.
Engloba os campos mais variados, desde o liberalismo de mercado até à
categorização marxista.
b) A ideologização psicológica. Trata-se de uma hermenêutica
elitista que, em última análise, reduz o "encontro com Jesus Cristo"
e seu sucessivo desenvolvimento a uma dinâmica de autoconhecimento. Costuma
verificar-se principalmente em cursos de espiritualidade, retiros espirituais,
etc. Acaba por resultar numa posição imanente auto-referencial. Não tem sabor
de transcendência, nem portanto de missionariedade.
c) A proposta gnóstica. Muito ligada à tentação anterior.
Costuma ocorrer em grupos de elites com uma proposta de espiritualidade
superior, bastante desencarnada, que acaba por desembocar em posições pastorais
de "quaestiones disputatae". Foi o primeiro desvio da comunidade
primitiva e reaparece, ao longo da história da Igreja, em edições corrigidas e
renovadas. Vulgarmente são denominados "católicos iluminados" (por
serem atualmente herdeiros do Iluminismo).
d) A proposta pelagiana. Aparece fundamentalmente sob a
forma de restauracionismo. Perante os males da Igreja, busca-se uma solução
apenas na disciplina, na restauração de condutas e formas superadas que, mesmo
culturalmente, não possuem capacidade significativa. Na América Latina, costuma
verificar-se em pequenos grupos, em algumas novas Congregações Religiosas, em
tendências para a "segurança" doutrinal ou disciplinar.
Fundamentalmente é estática, embora possa prometer uma dinâmica para dentro:
regride. Procura "recuperar" o passado perdido.
2. O funcionalismo. A sua ação na Igreja é paralisante. Mais
do que com a rota, se entusiasma com o "roteiro". A concepção
funcionalista não tolera o mistério, aposta na eficácia. Reduz a realidade da
Igreja à estrutura de uma ONG. O que vale é o resultado palpável e as
estatísticas. A partir disso, chega-se a todas as modalidades empresariais de
Igreja. Constitui uma espécie de "teologia da prosperidade" no
organograma da pastoral.
3. O clericalismo é também uma tentação muito atual na
América Latina. Curiosamente, na maioria dos casos, trata-se de uma
cumplicidade viciosa: o sacerdote clericaliza e o leigo lhe pede por favor que
o clericalize, porque, no fundo, lhe resulta mais cômodo. O fenômeno do
clericalismo explica, em grande parte, a falta de maturidade adulta e de
liberdade cristã em boa parte do laicato da América Latina: ou não cresce (a
maioria), ou se abriga sob coberturas de ideologizações como as indicadas, ou
ainda em pertenças parciais e limitadas. Em nossas terras, existe uma forma de
liberdade laical através de experiências de povo: o católico como povo. Aqui
vê-se uma maior autonomia, geralmente sadia, que se expressa fundamentalmente
na piedade popular. O capítulo de Aparecida sobre a piedade popular descreve,
em profundidade, essa dimensão. A proposta dos grupos bíblicos, das comunidades
eclesiais de base e dos Conselhos pastorais está na linha de superação do
clericalismo e de um crescimento da responsabilidade laical.
Poderíamos continuar descrevendo outras tentações contra o
discipulado missionário, mas acho que estas são as mais importantes e com maior
força neste momento da América Latina e do Caribe.
5. Algumas orientações eclesiológicas
1. O discipulado-missionário que Aparecida propôs às Igrejas da América Latina
e do Caribe é o caminho que Deus quer para "hoje". Toda a projeção
utópica (para o futuro) ou restauracionista (para o passado) não é do espírito
bom. Deus é real e se manifesta no "hoje". A sua presença, no passado,
se nos oferece como "memória" da saga de salvação realizada quer em
seu povo quer em cada um de nós; no futuro, se nos oferece como
"promessa" e esperança. No passado, Deus esteve lá e deixou sua
marca: a memória nos ajuda encontrá-lo; no futuro, é apenas promessa... e não
está nos mil e um "futuríveis". O "hoje" é o que mais se
parece com a eternidade; mais ainda: o "hoje" é uma centelha de
eternidade. No "hoje", se joga a vida eterna.
O discipulado missionário é vocação: chamada e convite.
Acontece em um "hoje", mas "em tensão". Não existe o
discipulado missionário estático. O discípulo missionário não pode possuir-se a
si mesmo; a sua imanência está em tensão para a transcendência do discipulado e
para a transcendência da missão. Não admite a auto-referencialidade: ou
refere-se a Jesus Cristo ou refere-se às pessoas a quem deve levar o anúncio
dele. Sujeito que se transcende. Sujeito projetado para o encontro: o encontro
com o Mestre (que nos unge discípulos) e o encontro com os homens que esperam o
anúncio.
Por isso, gosto de dizer que a posição do discípulo
missionário não é uma posição de centro, mas de periferias: vive em tensão para
as periferias... incluindo as da eternidade no encontro com Jesus Cristo. No
anúncio evangélico, falar de "periferias existenciais" descentraliza
e, habitualmente, temos medo de sair do centro. O discípulo-missionário é um
descentrado: o centro é Jesus Cristo, que convoca e envia. O discípulo é
enviado para as periferias existenciais.
2. A Igreja é instituição, mas, quando se erige em
"centro", se funcionaliza e, pouco a pouco, se transforma em uma ONG.
Então, a Igreja pretende ter luz própria e deixa de ser aquele "mysterium
lunae" de que nos falavam os Santos Padres. Torna-se cada vez mais
auto-referencial, e se enfraquece a sua necessidade de ser missionária. De
"Instituição" se transforma em "Obra". Deixa de ser Esposa,
para acabar sendo Administradora; de Servidora se transforma em
"Controladora". Aparecida quer uma Igreja Esposa, Mãe, Servidora,
facilitadora da fé e não controladora da fé.
3. Em Aparecida, verificam-se de forma relevante duas
categorias pastorais, que surgem da própria originalidade do Evangelho e nos
podem também servir de orientação para avaliar o modo como vivemos
eclesialmente o discipulado missionário: a proximidade e o encontro. Nenhuma
das duas é nova, antes configuram a maneira como Deus se revelou na história. É
o "Deus próximo" do seu povo, proximidade que chega ao máximo quando
Ele encarna. É o Deus que sai ao encontro do seu povo. Na América Latina e no
Caribe, existem pastorais "distantes", pastorais disciplinares que
privilegiam os princípios, as condutas, os procedimentos organizacionais...
obviamente sem proximidade, sem ternura, nem carinho. Ignora-se a
"revolução da ternura", que provocou a encarnação do Verbo. Há
pastorais posicionadas com tal dose de distância que são incapazes de conseguir
o encontro: encontro com Jesus Cristo, encontro com os irmãos. Este tipo de
pastoral pode, no máximo, prometer uma dimensão de proselitismo, mas nunca
chegam a conseguir inserção nem pertença eclesial. A proximidade cria comunhão
e pertença, dá lugar ao encontro. A proximidade toma forma de diálogo e cria
uma cultura do encontro. Uma pedra de toque para aferir a proximidade e a
capacidade de encontro de uma pastoral é a homilia. Como são as nossas
homilias? Estão próximas do exemplo de Nosso Senhor, que "falava como quem
tem autoridade", ou são meramente prescritivas, distantes, abstratas?
4. Quem guia a pastoral, a Missão Continental (seja
programática seja paradigmática), é o Bispo. Ele deve guiar, que não é o mesmo
que comandar. Além de assinalar as grandes figuras do episcopado
latino-americano que todos nós conhecemos, gostaria de acrescentar aqui algumas
linhas sobre o perfil do Bispo, que já disse aos Núncios na reunião que tivemos
em Roma. Os Bispos devem ser Pastores, próximos das pessoas, pais e irmãos, com
grande mansidão: pacientes e misericordiosos. Homens que amem a pobreza, quer a
pobreza interior como liberdade diante do Senhor, quer a pobreza exterior como
simplicidade e austeridade de vida. Homens que não tenham "psicologia de
príncipes". Homens que não sejam ambiciosos e que sejam esposos de uma
Igreja sem viver na expectativa de outra. Homens capazes de vigiar sobre o
rebanho que lhes foi confiado e cuidando de tudo aquilo que o mantém unido:
vigiar sobre o seu povo, atento a eventuais perigos que o ameacem, mas
sobretudo para cuidar da esperança: que haja sol e luz nos corações. Homens
capazes de sustentar com amor e paciência os passos de Deus em seu povo. E o
lugar onde o Bispo pode estar com o seu povo é triplo: ou à frente para indicar
o caminho, ou no meio para mantê-lo unido e neutralizar as debandadas, ou então
atrás para evitar que alguém se desgarre mas também, e fundamentalmente, porque
o próprio rebanho tem o seu olfato para encontrar novos caminhos.
Não quero juntar mais detalhes sobre a pessoa do Bispo, mas
simplesmente acrescentar, incluindo-me a mim mesmo nesta afirmação, que estamos
um pouco atrasados no que a Conversão Pastoral indica. Convém que nos ajudemos
um pouco mais a dar os passos que o Senhor quer que cumpramos neste
"hoje" da América Latina e do Caribe. E seria bom começar por aqui.
Agradeço-lhes a paciência de me ouvirem. Desculpem a
desordem do discurso e lhes peço, por favor, para tomarmos a sério a nossa
vocação de servidores do povo santo e fiel de Deus, porque é nisso que se
exerce e mostra a autoridade: na capacidade de serviço. Muito obrigado!
(Papa Francisco)